Dez anos sem Plínio Marcos


Por Carlos Minuano
[Revista Fórum]

Conheci Plínio Marcos no início da década de 90, época em que ele celebrava quatro décadas de trabalho com a peça 40 anos de luta, monólogo em que contava histórias e fazia um balanço de sua vida e obra. No entanto, quando falava a respeito, costumava acrescentar, com seu humor típico, “20 anos trabalhando e os outros vendendo livro!”. Ele se referia aos duros anos de censura da qual foi vítima, e que o obrigou a sobreviver vendendo seus livros em portas de teatro. Até 1980, todas as peças que escreveu foram censuradas.

A perseguição começou logo na primeira peça, Barrela, que em 1959 foi proibida após uma única apresentação. Neste mês, em que a primeira censura faz 50 anos, completam-se também dez anos sem Plínio Marcos. O dramaturgo morreu no dia 19 de novembro de 1999, em uma tarde de sexta-feira, de falência múltipla dos órgãos, aos 64 anos de idade. Não por acaso, acaba de sair do forno uma justa homenagem, Bendito Maldito – uma biografia de Plínio Marcos (Editora Leya, 500 págs., R$44,90), escrita pelo amigo e critico teatral, Oswaldo Mendes.

Estruturada em atos e cenas, semelhante a uma peça de teatro, a biografia mostra a trajetória meteórica de um dos mais importantes nomes da dramaturgia brasileira, da infância em Santos ao sucesso em São Paulo, como autor de teatro. “No primeiro ato, o herói se apresenta, define caminhos, faz opções que determinarão a sua história. No segundo ato, uma sucessão de acontecimentos aflora as certezas e as contradições, os conflitos explodem. No terceiro ato, o desfecho que sintetiza as ações de uma vida inteira”, explica Oswaldo Mendes. Uma linha do tempo acompanha a narrativa e permite ao leitor identificar a época em que aconteceu a ação e o ajuda a entender motivações de muitos episódios.

Plínio Marcos nasceu em 1935, no bairro portuário de Macuco, em Santos e teve um currículo extenso e bem diverso. Antes do teatro e dos livros, trabalhou como estivador, jogador de futebol, camelô e palhaço de circo. Aliás, foi lá, segundo ele, em um circo de ciganos no qual passou cinco anos, que aprendeu a escrever para teatro.

Entre suas principais obras estão as peças Abajur lilás, Navalha na carne, Dois perdidos numa noite suja e os livros Querô - uma reportagem maldita, Na barra do Catimbó e Histórias das quebradas do Mundaréu. Teve também uma sólida carreira no jornalismo, como cronista, passando por diversos jornais, Última Hora, Diário da Noite, Folha de São Paulo e nas revistas Veja, Realidade e Caros Amigos, entre outras. Sua obra também recebeu várias adaptações para o cinema, entre elas Navalha na carne, A mancha roxa, Dois perdidos numa noite suja e Querô.

A vida em Santos
Uma das histórias resgatadas na biografia é a de como Plínio, ainda em Santos, se virava para driblar os tempos de dureza. “Para não ficar sem trocados no bolso, ele inventava expedientes, como o de vender o mesmo livro para várias pessoas”, conta Mendes no livro. Um exemplo foi O pagador de promessas, peça de Dias Gomes, impossível de ser encontrado nas livrarias locais. “Daí vem o Plínio e nos diz que poderia conseguir o texto”, conta Pedro Bandeira, em Bendito Maldito. Uns dez logo se interessaram. Na volta, Plínio procurou o primeiro: “Está aqui a peça. Você vai ler agora? Não? Então me deixa ler, depois eu devolvo”. Plínio foi ao segundo, ao terceiro, enfim, repetiu para todos a mesma lorota. Quando os amigos perceberam o golpe, não adiantava mais nada. “Nenhum de nós podia dizer que ele levou o dinheiro e não entregou a encomenda. Só podíamos dizer que o Plínio tinha pedido o livro emprestado e ainda não o havia devolvido”, diverte-se Bandeira.

A última entrevista
Em 1999, ano de sua morte, Plínio estava abatido por uma série de problemas de saúde, decorrentes de uma diabete insistente. Não morava mais na velha e minúscula quitinete do Edifício Copan, mas em um confortável apartamento no agradável e tranquilo bairro de Higienópolis, com sua companheira na época, a jornalista Vera Artaxo. Apesar dos problemas de saúde, Plínio vivia um bom momento, sua obra finalmente era reconhecida, após décadas de duras perseguições. Ele acabava de ser homenageado na França, com a tradução e leituras de duas peças suas. E, aqui no Brasil, seu trabalho finalmente voltava a ser visto, e ele pôde, nesse período, sentir o reconhecimento do público, da classe artística e da crítica.

Em uma de suas últimas entrevistas, concedida a este repórter em agosto de 1999, Plínio falou bem menos que antigamente, mas em vários momentos mostrou sua fúria crítica de sempre, disparando sua metralhadora para todos os lados. Na ocasião, um de seus alvos principais foi FHC, que havia acabado de se reeleger. “Este Fernando Henrique ficar aí duas gestões é um ‘puta' dum absurdo do 'caraco'. É um incompetente comprovado”, disse. A porrada não foi menor quando questionei sobre um possível novo cenário caso Lula tivesse vencido as eleições de 98. “Também não entrou por incompetência, aliás, no meu entendimento ajudou a eleger o Fernando Henrique, porque as pessoas tinham medo do Lula e a defesa foi essa besta que está aí”.

Ele também lembrou das duras críticas que recebeu ao longo de sua vida, como no caso de A mancha roxa, 1988, uma de suas peças mais polêmicas, sobre o trágico drama da Aids, evidentemente vista pela ótica dos esquecidos, dos marginalizados: “Teve uma toupeira que escreveu se tratar de uma obra-prima que ninguém devia assistir. Quando ganhei o prêmio de melhor autor, joguei nos críticos e mandei eles à merda! Não preciso de prêmio, não sou cavalo de corrida! Preciso é de espaço para trabalhar!”, disse ele quase gritando.

O dramaturgo, como sempre fez, defendeu a arte como um instrumento de ação social e de subversão. “O artista está ficando muito mercenário, é preciso mais idealismo. A gente não pode esperar que os poderosos financiem a arte, ela tem que ser rebelde”. Para ele, somente assim a arte daria sua contribuição à sociedade com um elemento fundamental, a contestação. “Num momento de merda como o que estamos vivendo, evidente que precisa do artista pra poder instigar”.

A biografia Bendito Maldito resgata muitos testemunhos da força e do impacto do teatro de Plínio Marcos, como a reação do médico e escritor Roberto Freire ao assistir a peça Dois perdidos numa noite suja. “Se a peça fosse uma merda sairia no meio”, teria dito Freire. Ao ver a plateia vazia, concluiu que sair durante o espetáculo seria impossível. Estava ruminando a roubada em que se metera quando a peça começou. “Dez minutos depois eu estava fascinado. Que Nelson Rodrigues coisa nenhuma, ali estava a melhor peça de teatro feita no Brasil. No final, eu estava em prantos”.

Roberto Freire registrou o seu entusiasmo em texto para a revista Sinal, em que comparava Eles não usam black tie, de Guarnieri e Dois perdidos numa noite suja, de Plínio Marcos: “Quase dez anos os separam... A impressão que tenho é de que não se escreveu nada entre ambas. Porque faltou sinceridade, não houve real necessidade de escrever, nenhum outro autor teve bastante coragem de retratar seu mundo, ou seus mundos não possuíam nada digno de retrato. Ver Dois perdidos numa noite suja não é mole. Tem bastante humor para a gente descarregar a vergonha, o medo e a covardia que a honestidade do autor nos provoca. É a peça mais suja e cruel jamais escrita no Brasil. Por isso, linda e necessária, importante e verdadeira”.

Ao final da entrevista, acho que prevendo ser a última vez que falaria com Plínio Marcos, perguntei a ele se gostaria de deixar alguma mensagem para as novas gerações, ao que ele respondeu: “Quem estiver fazendo, tem que continuar fazendo e quem não estiver fazendo está morrendo e deixando as coisas morrerem”.

Essa matéria é parte integrante da edição impressa da Fórum de novembro. Nas bancas.

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