Xingu: 50 anos em filme


Um pouco mais sobre o filme 'Xingu' e outras histórias de minha viagem ao parque indígena, em reportagem publicada na revista SAX.

 'Xingu' traz seis personagens índios, 20 personagens secundários e ma is de 200 figurantes /foto de Guilherme Ramalho

Apenas uma lua cheia gigantesca, amarelada e misteriosa iluminava a noite no Parque Indígena do Xingu. Apesar do breu na vasta aldeia dos Ikpeng, foi mais que o bastante. A iluminação natural deu ao cenário um clima singular para a festa animada que avançou madrugada adentro. Cantos ancestrais entoados pelo obstinado pajé Araká conduziram a dança no interior e fora da enorme cabana. Em fila, homens, mulheres e crianças seguiam o ancião, incansáveis, cantando e brincando. A festa, que durou três dias, teve um motivo.

Conhecidos como índios guerreiros, os Ikpeng, que vivem desde a década de 60 no Parque do Xingu, no norte do Mato Grosso, decidiram botar a mão na massa e rever a própria história. Testemunhada por uma equipe de jornalistas, a festa celebrou um passo importante nessa empreitada dos índios: a inauguração da casa de cultura Mawo, uma base para formação, pesquisa, registro e divulgação da cultura Ikpeng. “Através desse espaço, queremos garantir o acesso ao nosso patrimônio pelos nossos netos, bisnetos e tataranetos”, explica Kumaré Txicão, presidente da Associação Indígena Moygu Comunidade Ikpeng.

A cantoria na aldeia marcava também o início de uma temporada de festas no Xingu. A reserva federal indígena, criada durante o governo do presidente Jânio Quadros em 1961, completava 50 anos de existência. Parte da história do parque é contada no filme “Xingu”. Dirigido por Cao Hamburger (“O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias”), o longa, que teve um orçamento de R$ 14 milhões, está em cartaz desde a sexta, 06.

50 anos de Xingu
A festa na aldeia Ikpeng representa apenas um pequeno extrato de uma espécie de universo paralelo onde resiste uma cultura ancestral. Resultado de um sonho sonhado pelo sertanista Orlando Villas-Bôas (1914-2002) e seus irmãos Cláudio e Leonardo, o Parque Indígena do Xingu é quase uma utopia. Foram dez anos de luta até a criação do parque, segundo conta o próprio Orlando em sua autobiografia, “Histórias e
Causos” (FTD, 216 págs). Uma campanha árdua, mas que teve apoio de peso, como o do Marechal Cândido Rondon e do antropólogo Darcy Ribeiro. “No Xingu, acabamos conseguindo o que até então nunca havia sido feito: o reconhecimento e a demarcação de um território amplo que permitisse às comunidades indígenas manter seu domínio sobre as terras em que tradicionalmente viviam”, escreveu Orlando, em seu último livro. Vivem hoje no parque cerca de cinco mil e quinhentos índios de 14 etnias diferentes.

O longa metragem recria a trajetória épica dos irmãos Villas-Bôas até a criação do parque. Uma aventura repleta de surpresas e descobertas, afirmou o diretor Cao Hamburger em entrevista à revista S.A.X.. “Filmamos em locais inóspitos. Enfrentamos a natureza bruta, um calor fortíssimo e até incêndios, em Palmas, por conta do ar muito seco”, lembra. Com muita disposição e sem perder o bom humor, ele e sua
equipe – cerca de 150 pessoas – encararam dez semanas de filmagens em Palmas, no Tocantins, no Parque indígena e, por fim, em São Paulo. “Sentimos na pele um pouco do que os irmãos Villas-Bôas enfrentaram
ao desbravar o centro-oeste brasileiro”.

O convite chegou a Cao Hamburger por Fernando Meirelles, que recebeu das mãos do Noel Villas-Bôas, filho de Orlando, o livro “Marcha para o Oeste” (que acaba de ser relançado pela Companhia das Letras), escrito pelos irmãos Orlando e Cláudio sobre os 42 anos de duração da expedição que resultou na criação do Parque do Xingu, aliás, o único do gênero em todo o continente americano.

Apesar de o filme ser inspirado no diário de viagem dos sertanistas e da extensa pesquisa que antecedeu as filmagens, Cao ressalta que o resultado final é uma ficção, livremente baseada em fatos reais. “É uma saga, com elementos dramáticos e de aventura misturados num pano de fundo de questões filosóficas e políticas muito contemporâneas, apesar de ser um filme de época”. Filmar a saga dos irmãos Villas-Bôas não é tarefa simples e Cao admite que a princípio teve receio de encarar o desafio. “Conhecia pouco sobre eles, mas sabia que era algo muito grandioso”, diz. “Não queria falar de heróis nacionais superficialmente, sem poder aprofundar os conflitos e as contradições humanas”.

Por isso o cineasta fez questão de entender as vertentes da história, as nuances e o potencial dramático do enredo. “Me apaixonei pela história e pelos personagens. E assim começou esse projeto”. Ele revela, nesse caso sem medo, que os meses de filmagem e estrada mudaram sua vida. “Meus conceitos de vida já não são mais os mesmos. O contato com os índios é transformador.” O diretor adianta que já está matutando sobre outro longa acerca do universo indígena. O encontro com os índios se deu principalmente durante as oficinas de atuação durante o período de filmagem no parque e em outras aldeias. O elenco de “Xingu – O Filme” traz seis personagens índios, vinte personagens secundários e mais de duzentos de figuração. No total, participaram trinta aldeias, de nove etnias diferentes. Para os papéis principais, atores escolhidos a dedo. Quem interpreta Orlando Villas-Bôas é Felipe Camargo, João Miguel faz o irmão Cláudio e Caio Blat vive o caçula Leonardo.

A expedição Roncador-Xingu
A saga dos irmãos Villas-Boas começa após a morte dos pais, quando os três irmãos decidem abandonar seus empregos e partir na Expedição Roncador-Xingu, que em meados de 1943 seguiu de São Paulo rumo ao então desconhecido Brasil Central. A caravana revelou que as regiões não eram desabitadas como se pensava, há séculos viviam nelas diferentes nações indígenas. As aventuras do sertanista e seus irmãos renderam 14 livros.
Foram décadas desbravando matas e sertões até que o sertanista Orlando Villas-Bôas conseguisse realizar seu grande sonho, a criação do Parque do Xingu, em 1961 – mesmo ano da morte do irmão Leonardo. Orlando foi o primeiro a administrar o parque e até hoje seu nome é reverenciado entre os xinguanos. Após sua morte, aos 88 anos, em 2002, foi realizado em sua memória o ritual do Kuarup com a presença de importantes líderes indígenas. O sertanista recebeu outro bocado de homenagens, como uma indicação ao premio Nobel.

O resgate dos Ikpeng
Entre as muitas histórias dos irmãos Villas-Bôas, uma que se destaca é a da pacificação dos Ikpeng – em cuja aldeia este repórter passou alguns dias. Eles eram índios selvagens na década de 1950, ainda não identificados e conhecidos por atazanarem aldeias do Alto Xingu em violentos ataques. Os Ikpeng viviam na época numa área às margens do rio Jatobá, nas imediações do parque indígena. Depois de escaparem de muitas flechadas e distribuírem um bocado de presentinhos, Orlando, e sua trupe, conseguiram gradualmente se aproximar da tribo e em doses homeopáticas, pacificá-los.

Por ironia, depois de muito pentelhar seus vizinhos xinguanos, os Ikpeng tornaram-se vítimas, não de seus muitos desafetos no parque, mas de garimpeiros armados até os dentes que se instalavam na região. Quase dizimados, o pequeno grupo com pouco mais de 50 sobreviventes foi transferido em 1967 para o interior do parque, sob proteção dos Villas-Bôas. Atualmente são cerca de quatrocentos. Apesar de adaptados no Médio Xingu, e vivendo em paz com a vizinhança numa bela aldeia situada à margem esquerda do rio Xingu, eles – sobretudo os mais velhos, querem voltar para a terra em que viviam.

O pajé Araká fala, com os olhos marejados, sobre o dia em que visitou a terra onde cresceu e viveu. “Tratores já haviam destruído tudo, mas mesmo assim consegui encontrar o local de nossa aldeia e o túmulo de minha irmã, quero morrer lá, junto com meus antepassados.” Com o arco e flecha em punho, acrescenta com o peito erguido: “Preciso voltar para minha terra, não quero morrer aqui.” A luta pela retomada das terras, ocupadas atualmente por fazendeiros e madeireiros não é simples. São cerca de 270 mil hectares ocupados por gigantescos campos de soja. Para piorar, o processo de reconhecimento das terras corre na Funai em ritmo de tartaruga.

Entretanto, a batalha dos Ikpeng já tem saldo positivo. Ela desencadeou um movimento sem volta na comunidade, que avança cada vez mais na forma de discussões relativas à origem, identidade cultural, história e à necessidade de valorização de seu patrimônio imaterial. Enquanto anciões lutam pelo retorno às terras de origem, mais jovens brigam para que a cultura Ikpeng permaneça viva. Para isso, abandonaram o arco e flecha e começaram a fazer uso de outras ferramentas: as novas tecnologias de informática.


De São Paulo até o Parque Xingu foi um dia inteiro decolando e aterrissando por vários aeroportos do País. A última escala – num aeroporto – foi em Sinop, no Mato Grosso. De lá, embarcamos num pequeno monomotor que nos deixou, no começo da tarde, em nosso destino final: a aldeia Ikpeng, no Médio Xingu. Depois de levantar acampamento – o que no caso era simplesmente amarrar a rede dentro da cabana onde passaríamos as noites – o melhor: caminhada no mato e um banho refrescante no rio Xingu.

Pipoca de índio
Era noite de quinta-feira, quando, depois do jantar, nos reunimos na sede da casa de cultura para um bate-papo e uma sessão de cinema. Apesar da luz do gerador iluminar alguns pontos da aldeia, fora da casa onde estávamos era difícil ver alguma coisa. Apenas sons, muitos sons. De grilos, cobras e tantos outros bichos. A festa dos índios Ikpeng incluía o lançamento de um CD com cantos do Yumpuno – ritual de iniciação das crianças, e o documentário “Gravando Som”, dirigido pelos cineastas Kamatxi Ikpeng e Karané Ikpeng, com participação de Mari Corrêa, do Instituto Catitu, que promove oficinas de formação de cineastas indígenas.

O filme lançado durante a festa mostra a transmissão dos saberes tradicionais de geração em geração e retrata o rito de passagem em que as crianças são tatuadas, passando então para a vida adulta cheia de deveres e responsabilidades. No último dia da festa também foi apresentado um banco de dados criado originalmente na língua ikpeng, que reúne material histórico, além de filmes, fotos, gravações de áudio, produção de livros e desenhos produzidos por eles mesmos. Entretanto, em nossa primeira noite, o filme exibido não era o que estava sendo lançado na festa, mas um outro, que contava o tenso contato com os não-índios e o encontro tumultuado com os irmãos Villas Bôas.

Os índios se divertiam muito quando se reconheciam na tela e se lembravam do fato. Difícil era se concentrar com o ataque maciço dos pernilongos xinguanos, ávidos por sangue novo. Enquanto me estapeava olhei pro lado e vi um bando de crianças indígenas, todos com latinhas na mão, comendo alguma coisa que parecia bem saborosa pelas caras deles. “Não deve ser pipoca”, pensei. Com uma esticada de pescoço descobri que não era mesmo. O ‘petisco’ que a molecada saboreava eram os traseiros enormes de formigas tanajuras que, ainda vivas e em visível agonia, tentavam inutilmente uma fuga desesperada. O garoto ao meu lado, provavelmente percebendo minha expressão de perplexidade se virou, me encarou com dois olhos que mais pareciam duas brilhantes bolas de gude, estendeu a latinha em minha direção e perguntou: “quer um pouquinho?”.


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