Utopias e dramas do Xingu
Sonho dos irmãos Villas Boas chega às telas em
momento de retrocesso em políticas
Por Carlos Minuano
(Foto de Paula Nogueira)
“Estamos andando pra trás nas políticas indígenas", disse o diretor Cao Hamburger na pré-estreia de Xingu em São Paulo |
O filme “Xingu”, de Cao Hamburger (O Ano em Que Meus
Pais Saíram de Férias), chega às telas em um momento de retrocesso nas
políticas indígenas. No mês em que é celebrado o dia do índio, pouco há para se
comemorar. O Parque Indígena, criado pelos irmãos Villas Boas, cenário do
filme, vive às voltas com diferentes ameaças, e em outras aldeias espalhadas
pelo país, o clima é de medo, provocado por invasões do garimpo, pela ameaça
constante do narcotráfico e pela violenta disputa pelas terras com fazendeiros
fortemente armados.
O avanço da política indigenista, expresso na saga
dos irmãos Villas Boas, e bem retratado no filme, corre sério risco de ir por
terra. No caso especifico do Parque Indígena do Xingu, área de 2, 6 milhões de
hectares no Mato Grosso, uma nova ‘transamazônica’ tira o sono de indígenas. A
construção da usina hidrelétrica Belo Monte, enfiada goela abaixo dos povos
xinguanos, figura hoje ao lado de outros problemas mais antigos – que não param
de crescer – como o avanço de território desmatado e das culturas de grão e da
pecuária.
“Estamos correndo o risco de andar para trás não só
nas políticas indígenas, mas também nas questões ambientais”, afirmou o diretor
Cao Hamburger, pouco antes da exibição de Xingu para a imprensa e convidados,
em São Paulo. “Se a sociedade não se tocar, vamos ficar pior que caranguejo”,
ironiza o diretor. Ele acredita que o filme pode iluminar um pouco a questão
nesse sentido. “Contamos uma história que se passou há cinquenta anos, mas que
é muito atual e urgente.”
O filme faz um justo resgate da historia de três
brasileiros de primeira grandeza que decidirem botar o pé na estrada, inicialmente
sem saber ao certo pra onde, nem por que. A viagem em questão é a Expedição
Roncador-Xingu que, em 1943, partiu de São Paulo rumo a regiões inóspitas do
Brasil Central. Seus nomes: Orlando, Cláudio e Leonardo Villas Bôas. Impulsionados,
em princípio, pelo desejo de aventuras, descortinaram o misterioso mundo dos
povos indígenas. Um mundo que, como poucos, eles compreenderam e ajudaram a
preservar. E ao qual, apaixonados, dedicaram – de corpo e alma – suas vidas.
Abraço
da morte
“É uma joia pública preservada”, defende o ator Caio
Blat, que vive no longa o caçula, Leonardo Villas Boas. “Eles previram o avanço
da destruição que ameaçaria os povos da região, chamavam isso de ‘abraço da
morte’, o que, aliás, já está acontecendo, todo o entorno do parque já está
devastado”, ressalta o ator. Ele também acredita que o filme chega numa boa
hora. “Vamos levantar esse debate, levar esse tema para as casas das pessoas,
escolas, e tentar reverter essa situação com a participação da sociedade”. Para
o ator, quadro é dramática. “ O parque está no seu limite, desmatamentos
chegaram perto demais e impactos da usina Belo Monte não estão claros.” O ator
aproveita pra chamar a atenção sobre questões ambientais. “Código florestal que
está sendo aprovado é vergonhoso.”
A atriz Maria Flor, que vive o papel de Marina, a
viúva de Orlando Villas Boas, e que passou vários dias no parque indígena,
conta ter se impressionado ao ver como os índios ainda continuam vivendo dentro
da própria cultura, mas vê com ressalvas a ideia de preservação cultural. “É
inevitável nossa cultura entrar ali, e essa mistura é muito interessante, eles
querem isso, ter ipod, máquina fotográfica, é legítimo, e o bacana é que ao
mesmo tempo permanecem ligados às tradições.”
“Falta
outro ‘Orlando’ pra botar ordem na casa”, diz Marina Villas Boas.
Verdadeira celebridade na noite da pré-estreia do
filme em São Paulo, Marina elogiou o olhar ‘sensível e competente’ do diretor
Cao Hamburger. Sobre a atual situação de fragilidade de aldeias, ela lamenta. “Falta
o interesse que já existiu na questão indígena”, em outras palavras, a viúva
quis dizer que falta outro ‘Orlando’ pra botar ordem na casa, ou na aldeia.
Também marcou presença na pré-estreia de Xingu, ao
lado da sempre bela, Bruna Lombardi, o eterno Aritana da TV, o ator Carlos
Alberto Riccelli, que teve a ajuda dos sertanistas Orlando e Claudio Villas
Boas para a composição de seu personagem, o líder indígena do Alto Xingu,
Aritana Yawalapiti, em 1978, na saudosa TV Tupi. “Eles foram excelentes
professores, me ensinaram um pouco dos costumes e do idioma”, diz o ator, que
vive hoje em São Paulo e em Miami. Bruna acrescenta um detalhe importante.
“Para nós tem um significado todo especial, foi no Xingu que nos conhecemos.”
O ator que acabava de chegar do Fórum de
Sustentabilidade de Manaus, também ergueu a bandeira ambiental. Ele citou uma
petição, da ONG Greenpeace que propõe
‘desmatamento zero’. “Pra transformar isso em lei é preciso 1 milhão e
meio de assinaturas.” Ele afirma que a exemplo do que aconteceu com a Lei da Ficha
Limpa’, que teve expressiva participação da sociedade, essa proposta pode fazer
mais do que a atual revisão do código florestal, onde, segundo ele, ‘todo mundo
deu palpite, mexeu onde não precisava e
tudo para salvar quem deveria ser punido.”
Para o cineasta Fernando Meirelles (um dos diretores
da O2 Filmes, produtora de Xingu), o longa, dirigido por Hamburger, questiona o
que é progresso. Ele se refere a uma cena em que Felipe Camargo, na pele de
Orlando, arremata o assunto afirmando que “progresso não interessa nem pra
gente.” Questionado sobre porque não é mencionada a construção da Belo Monte, o
diretor se defende dizendo que as imagens da Transamazônica no final do filme já
deixam implícita a questão. Mas afirma ser contra a obra, imposta sem os
devidos estudos de impacto. “Serão dezessete usinas ao longo do rio para
produzir uma energia elétrica que não precisamos, para fazer alumínio para a
China”, conclui.
Histórias
de pajés
Certamente,
o mais fantástico nas aventuras de Orlando Villas Boas foi seu encontro com o
fascinante universo da cultura indígena. Desta mesma fonte, ele resgatou outro
tesouro, as histórias de poderosos pajés, autores de feitos mirabolantes. A
enfermeira Marina Villas Bôas, esposa do sertanista, que viveu e trabalhou com
ele durante 12 anos no Xingu, conhece uma porção delas. Muitas, porém, trazem
pitadas de um recheio fantástico, que ela própria reconhece ‘precisar muita fé
para acreditar’. O que não impede o fascínio pelo universo indígena, motivo que
a fez abandonar a vida segura em São Paulo e seguir rumo ao Xingu, onde viveu e
trabalhou durante doze anos. Peço e ela concorda em contar um desses ‘causos’
mirabolantes.
“Um
índio foi pescar com seus dois filhos. Duas crianças – uma de seis e a outra de
oito ou nove anos. O pai foi até a outra margem do rio, mas advertiu aos
pequenos para que o esperassem ali onde estavam. Quando retornou já não estavam
mais lá. O índio procurou, mas não os encontrou. À noite, desesperado, voltou à
aldeia. No dia seguinte, várias equipes de índios saíram à procura das
crianças, sem sucesso. Orlando chamou então o pajé, que garantiu que as
crianças estavam bem e que voltariam, mesmo depois de terem passado vários
dias, com chuvas e tempestades. Quase duas semanas após o sumiço dos garotos, o
pajé fez uma cerimônia e depois afirmou que no dia seguinte, ao meio-dia, eles
retornariam à aldeia. No horário previsto, pediu que todos ficassem em suas
casas enquanto ele faria sua reza. Em seguida, como anunciado, as crianças
voltaram. Não tem explicação”, conclui Marina.
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