Reportagem sobre o filme Na Estrada (On
The Road), de Walter Salles, que estreia dia 13 de julho no Brasil. O longa
inspirado no clássico livro de Jack Kerouac concorreu a Palma de Ouro no
Festival de Cannes e tem como protagonistas Garret Hedlund, Sam Riley e Kristen
Stewart.
Cultura
Corações Livres
"On
the Road". de Jack Kerouac, inspirou os sonhos de gerações de
desencantados com o sonho americano. Meio século depois, vira filme nas mãos de
Walter Salles
Por: Carlos Minuano/Revista do Brasil
Os Estados
Unidos são uma sociedade conservadora. E o “sonho americano”, alicerçado nos
pilares trabalhar-comer-consumir-obedecer, é a célula-tronco da sociedade
capitalista. Por isso não deixa de ser curioso que muitos dos ídolos cultuados
na América, de ontem e de hoje, foram ou são tremendos marginais, vagabundos
incorrigíveis e muitos deles drogados convictos.
No topo
dessa vasta lista de anti-heróis sempre estará o nome do escritor Jack Kerouac,
autor do antológico livro On The Road,
traduzido aqui como Pé na Estrada. A
obra, uma espécie de bíblia hippie, chega agora ao cinema com mais de meio
século de atraso, dirigida pelo brasileiro Walter Salles, de Central do Brasil.
Além da mão segura de Salles, o filme é uma produção de Francis Ford Coppola. O diretor da saga de O Poderoso Chefão e Apocalipse Now já havia exibido seu lado beat em obras menos famosas, como Vidas sem Rumo (1979) eSelvagem da Motocicleta (1982), numa espécie de trilogia da juventude, concluída em 2009 com Tetro, filmado na Argentina. Na Estrada mostra a saga de Kerouac, que no final da década de 1940 caiu no mundo, de carro, de carona, de trem, vagando em busca não do sonho americano, mas da utopia de viver a vida intensamente.
A louca história dessas viagens foi escrita
de forma compulsiva e alucinada em três semanas (segundo o próprio autor). Ele
ajustou um enorme rolo de papel para telex para que não precisasse trocar de
folha enquanto escrevia. A ideia era que os originais estendidos feito um
tapete resultassem na representação de um caminho, a estrada. O resultado foram
40 metros de textos – que hoje valem uma fortuna, equivalente a uma obra de Van
Gogh.
On the Road é uma
fábula sobre as estradas, mas suas histórias são verdadeiras. Kerouac traduz o
espírito dos caminhos que percorreu ao lado de seu companheiro Neal Cassady e
os recria nos personagens Sal Paradise e Dean Moriarty. Lançado em 1957, foi
sucesso imediato e transformou o autor no anti-herói de uma América fracassada.
O romance fez (e ainda faz) a cabeça de muita gente no mundo todo.
Deu vida à
geração beat, mais adiante ao movimento hippie, e as bases de um estilo de
comportamento posteriormente chamado de contracultura.
“On the Road arrancou as pantufas da literatura,
levantou-lhe a barra da saia e a levou para dar uma voltinha na lama do
acostamento”, diz Eduardo Bueno, um dos tradutores da primeira fornada do
clássico para o português. Lançado com mais de cinco décadas de atraso, o
esperado longa Na Estrada,
coprodução Brasil, França e EUA, já é um sucesso. A estreia na França, no
final de maio, no 65º Festival de Cannes, encerrou uma longa jornada. A
produção percorreu mais de 100 mil quilômetros em oito anos de trabalho.
Logo que
recebeu de Coppola o convite para filmar, Salles decidiu ir para a estrada,
refazer as rotas de Kerouac. “Senti que a única maneira de realizar uma
adaptação que fizesse justiça a Kerouac seria fazer um documentário em busca de On the Road”, comenta. E o cineasta lançou-se à própria
aventura. “Fomos de cidadezinha em cidadezinha, sem uma programação
previamente estabelecida, olhando não somente para a estrada, mas para aquilo
que havia à margem dela.” Segundo ele, processo semelhante à preparação de Diários da Motocicleta,
quando refez duas vezes a rota trilhada por Ernesto Guevara e Alberto Granado
do sul ao norte do continente americano.
Com uma pequena equipe de três pessoas,
Salles foi entrevistando personagens do livro marginal e poetas da geração beat
ainda vivos, como Lou Reed ou David Byrne. “Foi uma verdadeira viagem
iniciática, um processo de aprendizado extremamente estimulante”, conta o
diretor.
O bando
infame
Jack
Kerouac não esteve sozinho nas estradas por onde andou ou na literatura que
subverteu com um jeito novo de escrever – espontâneo, instintivo e sem
revisões. Seu bando infame incluiu poetas e escritores tão ou mais malucos do
que ele, como Allen Ginsberg, William Burroughs (na foto acima), Gregory Corso, Lawrence Ferlinghetti,
Michael McClure, Gary Snyder. Essa turma representou a primeira safra da tal
beat generation – expressão criada por Kerouac em 1948.
“Os beats inspiraram jovens
a romper com atitudes e o estilo de vida convencional e procurar novos modos de
expressão”, afirma o poeta Cláudio Willer, tradutor do clássico beat Uivo e Outros Poemas, de Allen Ginsberg, e autor do
livro Geração Beat (ambos
da L&PM). Segundo o próprio Ginsberg, o “movimento literário da geração
beat” era formado por “um grupo de amigos que trabalharam juntos em poesia,
prosa e consciência cultural”. O termo se tornou popular nos EUA ainda nos anos
1950.
Para entender a importância da literatura
beat, no entanto, é preciso olhar para trás. Para começar, os Estados Unidos do
pós-guerra, reafirmados como potência mundial, tinham Eisenhower como
presidente. Nixon, o vice. Veteranos voltavam para casa em busca do american
dream. Começava a corrida espacial. Os soviéticos lançavam o Sputnik I e os
americanos, o Explorer I. Enquanto ambos corriam para o espaço, na terra
protagonizavam a Guerra Fria, travada entre o capitalismo e o comunismo.
No campo social, avançavam movimentos pelos
direitos humanos e toda uma revolução comportamental que estruturaria na
década de 1960 a luta pelos direitos civis, em defesa das mulheres, dos negros,
dos homossexuais. A Lei Seca era coisa do passado. Findava a temporada de
perseguição a comunistas e progressistas, desencadeada pelo senador John
McCarthy – a incipiente geração beat, não partidária por natureza, foi
solidária aos caçados pelo macartismo. Ou seja, havia terreno fértil para a
revolução (e a bebedeira) de Kerouac e sua gangue. E a trilha sonora era de
primeira qualidade. Entravam em cena Thelonius Monk, Charlie Parker, Dizzy
Gillespie, entre outros.
Os brasileiros
Em 1957, em São
Paulo, o então prefeito Jânio Quadros proibia o rock nos bailes. A velocidade
da informação era a do rádio, da tevê a válvulas e das rotativas. Ainda assim,
não tardou a borbulhar por aqui a fervura beat americana.
Nem o
golpe militar frearia mentes e corações ávidos por liberdade, e o Brasil se
revelou rapidamente celeiro fértil. Da bossa nova à renovação da MPB, o teatro,
a literatura, a poesia e o cinema engajados à cultura marginal e à
contracultura. Nascia uma literatura visceral, em vozes como de Roberto Piva e
Jorge Mautner.Segundo o poeta Cláudio Willer, a cultura beat chegou às terras
brasileiras por volta de 1959, 1960, por intermédio de reportagens no antigo
Caderno B do Jornal do Brasil e no Suplemento Literário de O Estado de S.
Paulo. Entre os leitores mais atentos estavam o diretor teatral José Celso
Martinez Corrêa e Luiz Carlos Maciel, futuro difusor e pensador da
contracultura.
E Roberto Piva escancarou o movimento para o
Brasil, segundo Willer. “Não mais como notícia, matéria jornalística, mas como
diálogo, relação no plano da criação.” A estreia de Piva foi com o instigante
Paranoia, ricamente ilustrado por fotos de Wesley Duke Lee, publicado em 1967
pelo editor Massao Ohno (a foto acima é uma das imagens do livro). Em 2009, o livro ganhou cuidadosa nova edição pelo
Instituto Moreira Salles. Paranoia é pura provocação. Adepto de uma vida
desregrada, Piva incorporou totalmente a alma beat.
Vagabundeou
o quanto pôde pelo centro de São Paulo e, em perfeita sintonia com Ginsberg,
McClure, Snyder, Kerouac, Corso, inovou, experimentou, ousou e rompeu com todo
e qualquer academicismo. E também já foi parar em dois documentários. No
média-metragem Assombração Urbana,
de Valesca Dios (2005), e em Uma Outra Cidade, de Ugo Giorgetti (2000). Por triste coincidência,
como Kerouac, morreu pobre, em 2010. Passou os últimos anos solitário em seu
pequeno apartamento no centro da capital paulista.
Equivalentes brasileiros da beat generation
renderiam uma extensa lista. Dos mais próximos ao tropicalismo, Wally Salomão e
sua Navilouca, Torquato Neto, Hélio Oiticica e Rogério Duarte.
“Cronologicamente, podem ser vinculados a outro ciclo, da contracultura e das
rebeliões juvenis da década de 1960, por sua vez com um enorme débito com
relação à beat”, observa Cláudio Willer. “Isso vale também, certamente, para
Raul Seixas.” O experimentalismo é levado por Zé Celso para o Teatro Oficina;
para o cinema marginal de Jairo Ferreira, Rogério Sganzerla, Julio Bressane e
Carlos Reichenbach; para a poesia marginal – reunida na antologia 26 Poetas
Hoje, de 1976, preparada por Heloisa Buarque de Hollanda. Sem contar os
escritores viajantes Antonio Bivar e Eduardo Bueno, que refizeram os trajetos
de Kerouac antes de se destacar como tradutores e difusores dessa cultura.
Filhos da geração
Mesmo que você não faça a menor ideia de quem
foi Jack Kerouac, já ouviu ou leu muita coisa a ver com ele. Ele foi idolatrado
por muita gente famosa. Os Beatles têm a raiz beat identificada por John
Lennon. Bob Dylan, Jim Morrinson, Tom Waits, Franz Zappa, cada música
“atirando” para um lado, têm algo do guru das estradas em seu DNA; no cinema,
Johnny Depp, Win Wenders, Gus Van Sant (e por que não arriscar Francis
Coppola), idem.
Outro beat da pá virada, William Burroughs,
reconheceu o sucesso do amigo: “Kerouac abriu um milhão de cafés literários e
vendeu bilhões de jeans Levis”. Apesar da indústria criada em torno do
escritor, ele morreu em 1969 na pindaíba, duro e, por ironia, de costas para
uma tal revolução da qual fora mentor.
“Passou
seus últimos anos sentado no sofá vendo programas de auditório na TV, na casa
da mãe, onde morou a vida inteira, barrigudo, alcoólatra e reacionário”,
escreve Eduardo Bueno na introdução de Pé na Estrada.
Kerouac terminou a vida frustrado e pobre. Mas, morto, sua lenda só tem
crescido. “Seu legado, em essência, desde que os seguidores saibam discernir, é
que, apesar de tudo, a liberdade e o livre-arbítrio são para todos”, afirma o
escritor Antonio Bivar, atualmente em Londres.
A sonoridade das ruas
O
livro-mito On the Road passa
de geração em geração sem perder a força narrativa. Entre as muitas curvas
sinuosas, repletas de jazz, sexo e drogas, o escritor desvendou o espírito de
uma época. “Kerouac empenhou-se em forjar uma nova prosódia, capturando a
sonoridade das ruas, das planícies e das estradas dos EUA, disposto a libertar
a literatura americana das amarras acadêmicas”, escreveu Eduardo Bueno, na
introdução da edição brasileira.
“Essa coragem de se lançar em estradas desconhecidas permitiu a experimentação, a visceralidade, o desregramento dos sentidos (haste fundamental para as invenções), o espiritualismo, o antimaterialismo”, afirma o poeta Celso de Alencar. “Foi uma rebelião contra um sistema caduco, sem criação.”
O termo beat, com o qual Jack Kerouac batizou sua geração, tem relação com a busca espiritual intrínseca a sua obra e vida. O vocábulo, entre outros vários significados, contém o radical de “beatitude”. Kerouac acreditava na pregação da bondade universal. E os beats, por sua vez, na criação espontânea, na arte que vem do nada. “Acreditavam na liberdade do espírito”, arremata Alencar.
Na década de 1960, a ideologia hippie, na arte ou no comportamento, ancorou-se também nas ideias de Kerouac. Paz e amor, busca interior, atitude transgressora, subversiva, rebelde, a ponto de estar também na raiz da aparentemente contrastante cultura punk.
Talvez isso explique por que Kerouac segue idolatrado não apenas entre famosos e por toda parte. Nas livrarias de Nova York, diz-se, On the Road não é visto nas prateleiras, e sim ao lado dos caixas: é um dos livros mais roubados.
“Essa coragem de se lançar em estradas desconhecidas permitiu a experimentação, a visceralidade, o desregramento dos sentidos (haste fundamental para as invenções), o espiritualismo, o antimaterialismo”, afirma o poeta Celso de Alencar. “Foi uma rebelião contra um sistema caduco, sem criação.”
O termo beat, com o qual Jack Kerouac batizou sua geração, tem relação com a busca espiritual intrínseca a sua obra e vida. O vocábulo, entre outros vários significados, contém o radical de “beatitude”. Kerouac acreditava na pregação da bondade universal. E os beats, por sua vez, na criação espontânea, na arte que vem do nada. “Acreditavam na liberdade do espírito”, arremata Alencar.
Na década de 1960, a ideologia hippie, na arte ou no comportamento, ancorou-se também nas ideias de Kerouac. Paz e amor, busca interior, atitude transgressora, subversiva, rebelde, a ponto de estar também na raiz da aparentemente contrastante cultura punk.
Talvez isso explique por que Kerouac segue idolatrado não apenas entre famosos e por toda parte. Nas livrarias de Nova York, diz-se, On the Road não é visto nas prateleiras, e sim ao lado dos caixas: é um dos livros mais roubados.
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