“Ralé é um filme sobre as minorias que reivindicam o direito de ser feliz”, diz Helena Ignez

Carlos Minuano, para a revista Preview

Era para ser um documentário, mas o filme Ralé se tornou outra coisa. “O momento atual transformou o rumo do roteiro e a ideia original” disse em entrevista à Revista PREVIEW a diretora Helena Ignez (Luz nas Trevas), que também atua no longa, ao lado do amigo, o músico Ney Matogrosso.

O filme, de narrativa incomum, mistura xamanismo, gays e trans de todos os tipos, que se espalham de maneira, muitas vezes, desconexa nas várias camadas de Ralé. Mas ok, a ideia do longa realmente parece não ser mesmo a de explicar nada.


No centro da história “muito louca” está a beberagem amazônica ayahuasca, chá alucinógeno usada em rituais indígenas e por grupos religiosos. Helena interpreta uma xamã que encontra um ex-­presidiário e viciado que se transforma ao conhecer a erva, personagem vivido por Ney Matogrosso.A inspiração para o filme, segundo a diretora, veio dos miseráveis da peça homônima do russo Maxim Gork (1868­ 1932). Ela conta ter ficado impressionada pela forma como o texto rompia com o teatro aristotélico da época, usando uma narrativa dramática incomum. “Abordava questões sociais com uma liberdade não usada até então”.

No plano inicial, os bêbados do autor russo seriam substituídos pelos noias do crack, mas quem acabou se impondo no filme foi uma “antiralé”, afirma Helena, a classe artística, os independentes, e as minorias que reivindicam o direito de ser feliz.

Os personagens de Gork são viciados literalmente na lona (aliás, o título original da peça é Na Dnie, ou “No Fundo”, em português). A peça mostra um universo em decadência, muito parecido com os “zumbis” das cracolandias atuais. “O pensamento de Gork não me engessou, pelo contrário, me inspirou a fazer outra coisa”, afirma a diretora.




A trama de Helena Ignez abraça ainda jovens diretores, adolescentes que filmam A Exibicionista em uma fazenda paradisíaca. Sim, tem um filme dentro do filme. O personagem de Ney Matogrosso vive nesta fazenda onde, após curar­-se no xamanismo, celebra seu casamento com um dançarino.

Personagens e história apresentados, vale dizer que “Ralé” não é para todos os gostos. O filme abusa da poesia, da filosofia e da música para refletir sobre a alma brasileira, a Amazônia como epicentro do mundo, os direitos à liberdade e individualidade sexual e mais uma farta porção de questões existenciais. Mais indicado para quem é fã dos cults, como Robert Altman e Michelangelo Antonioni.

O filme Ralé chega às telas após circular por diversos festivais do país e ter encontrado pelo caminho uma receptividade extremamente amorosa. “A resposta foi emocionante em todas as sessões”, ressalta Helena. A cineasta acredita que o público foi sensível a uma urgência que explode no filme – o quinto que dirige. “Falamos de coisas que são necessárias, que precisam ser ditas, sobre todos nós, mulheres, gays, trans, minorias de direitos, todos os exilados da sociedade, os insatisfeitos que desejam ser felizes profundamente, é esse o meu público”.


Ícone de uma linhagem fina do cinema nacional em sua forma mais inventiva e experimental, Helena Ignez foi casada com os diretores Glauber Rocha, Julio Bressane e Rogério Sganzerla, diretor de Copacabana Moun Amour (no longa, filmado com uma única câmera em 1970, Helena faz uma prostituta alucinada e se torna uma espécia de musa marginal da época).

Sobre o cenário político atual, a diretora discorda que sejam tempos tenebrosos. “São apenas dias difíceis”, diz. “Terrível foi a década de 1970, após o AI­5, anos horrorosos, mortais, crueis e violentos”. A diretora de Ralé afirmou ainda não temer “mostrinhos idiotas”, como o deputador federal Jair Bolsonaro, que citou o coronel Brilhante Ustra – torturador na ditadura militar – durante a votação pelo processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff.

Revista Preview

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