Nas águas do rio Tietê, os paradoxos do Brasil

QUARTA PAREDE
Grupo Teatro da Vertigem, que já encenou peças em igreja, hospital e presídio, invade agora as águas poluídas do rio Tietê. Durante o espetáculo BR-3, os personagens navegam por um país repleto de contradições.
Carlos Minuano

Teatro em espaços diferenciados não é exatamente uma novidade. Pelo mundo afora, várias experiências do gênero já quase esgotaram a fórmula. Quase, pois a peça BR-3, que o Teatro da Vertigem acaba de estrear em São Paulo, extrapola as expectativas. O grupo, que já encenou em igreja, hospital e presídio, invade agora as águas poluídas do rio Tietê, onde os personagens navegam por décadas de um Brasil repleto de contradições.
Ao longo do leito do principal rio da capital paulista, 13 atores esgueiram-se por margens, sob pontes, saídas de córrego ou em um pequeno barco a motor. Eles contam a história de Jovelina (Marilia de Santis), que sai à procura do marido enviado para trabalhar na construção de Brasília. Sem sucesso na busca, ela acaba tornando-se traficante na vila Brasilândia, periferia paulista. Por três gerações de sua família, desencontros e fatalidades que encontram no ambiente de degradação do Tietê o cenário perfeito.
Quem encarou o desafio de conceber um texto para ser encenado sobre as águas do velho rio foi o escritor Bernardo Carvalho. A pedido do diretor Antonio Araújo, o autor enredou em sua trama três lugares distintos do país. BR-3 conecta Brasília, Brasiléia e Vila Brasilândia e escancara um Brasil múltiplo e paradoxal, onde o desenvolvimento e o atraso, o religioso e o profano navegam de mãos dadas e se fundem com o cenário nada convencional.
UM PAÍS À ESPERA DO FUTURO
A aventura que chega agora ao publico é fruto de mais de três anos de uma extensa pesquisa que incluiu uma viagem pelo interior do país e uma temporada na periferia paulistana. Após as andanças pelos cafundós brasileiros, Carvalho decidiu escrever uma peça que falasse sobre a realidade desse Brasil que encontrou durante a viagem, segundo ele, “um país sempre a espera de um desenvolvimento que nunca chega”. “Nosso projeto de modernidade foi à falência, o Tietê é um exemplo disso”, afirma o autor, que assina pela primeira vez um texto teatral.
Embora a intenção fosse de não enveredar pelos caminhos sinuosos da religião, de acordo com Carvalho, durante o mergulho por cidades como Xapuri, Cuiabá e Porto Velho, o encontro foi inevitável. “Há um forte misticismo no norte do país. Em Brasília, por exemplo, entre os místicos, há uma crença de que a cidade tenha sido construída em cima de um cristal”. O autor destaca também a forte influência que a religião Santo Daime (adepta da bebida amazônica ayahuasca em seus cultos) provocou durante a visita à Brasiléia. Em São Paulo, na Vila Brasilândia, a influência religiosa também não passou despercebida. A trupe deparou-se com uma quantidade enorme de igrejas evangélicas. “Eles estão por toda parte”, conta o dramaturgo.
“TUDO O QUE EU TOCO MORRE!”
Na periferia paulista, além do excesso de igrejas evangélicas, chamou também a atenção do grupo a quantidade de sujeira espalhada por toda a região. “São milhares de pessoas vivendo no meio do lixo”, observa Carvalho. Após a temporada na Vila Brasilândia, ele ficou tão impressionado que aderiu a reciclagem de lixo em seu cotidiano. O impacto também atingiu sua peça. Em BR-3, há uma espécie de alegoria dessa condição predatória do ser humano. “O homem é um suicida irreversível. O planeta está acabando e não paramos de destruir”, analisa Carvalho. Percepção que se torna o dilema vivido por um dos personagens. Jonas (Roberto Áudio), um dos filhos de Jovelina, exclama perplexo inúmeras vezes, como se contemplasse seu destino inalterável: “tudo o que eu toco morre!”.
Para Carvalho, “a desgraceira de Jonas é o emblema de uma nação que sonha há anos com o crescimento, mas que se encontra todos os dias com o caos”. A saga da nordestina Jovelina até a periferia paulista, dessa forma, acaba sendo uma alegoria que trafega da utopia da modernização para a realidade dura, miserável e trágica.
NAVEGAR É PRECISO
Enquanto o público acompanha a trama, durante cerca de 2h20, dentro de uma confortável embarcação chamada Almirante do Lago, que segue desde o Cebolão até a ponte da Rodovia dos Bandeirantes, o elenco esmera-se para manter a atenção de uma platéia sujeita o tempo todo à dispersão estimulada pelas garrafas pet, que bóiam por todo o percurso, pelos caminhões que transitam pelas marginais e, óbvio, pela estranheza da experiência.
A empreitada vertiginosa da trupe de Araújo requer uma produção complexa que envolve monitoramento do nível das águas do rio (conforme a situação de navegabilidade a apresentação pode ser cancelada), logística de barcos e cenários e ainda a atenção ao público. O espectador precisa chegar com uma hora de antecedência a um ponto de encontro localizado no Memorial da América Latina, de onde saem ônibus que levam até o Cebolão.
Além do trabalho que a peça deu em pesquisas e no desbloqueio de entraves burocráticos, como as várias autorizações que precisaram conseguir para executar o projeto, o grupo teve ainda que enfrentar ensaios nada ortodoxos. Segundo Araújo “foram meses para se acostumar com o rio e seu cheiro”. Outro obstáculo foi o dinheiro, BR-3 custou caro. Com um orçamento de R$ 900 mil, sua montagem só foi possível graças ao apoio da Lei de Fomento ao Teatro da Cidade de São Paulo e a patrocínios (Petrobrás e Transrio Barcos e Desenvolvimento).
Além de todas as leituras possíveis, BR-3 traz ainda um alento novo ao Tietê. Ao se tornar palco de um espetáculo e, portanto, o centro das atenções, é possível vislumbrar que ele tenha sua importância para a cidade redimensionada. Na mesma semana em que a peça estreou, foram concluídos ampliação e aprofundamento de suas calhas, além de inúmeras obras de saneamento. No entanto, vale lembrar que o Tietê ainda é o destino diário de mais de mil toneladas de lixo, claro alerta de que há muito por fazer por esse rio que, feita a tradução do tupi, ironicamente chama-se água boa. Enfim, um país de contradições.
Serviço
Ponto de Encontro no Memorial da América Latina
(Av. Auro Soares de Moura Andrade, 664, portão 8, Barra Funda, região oeste)
Tel. 3115-0345. Quarta a sexta: 21h. Sábado e domingo: 20h. 140 min. 12 anos.
Ingressos: R$ 40 (ingressos na Fnac Paulista e Pinheiros)
Acesso a deficientes. Até junho.
Fotos:
divulgação
Agência Carta Maior

Comentários

Anônimo disse…
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