Os dois lados do lixo

Por Carlos Minuano e Max Gonçalves

Dona Geralda, apelido de Maria das Graças Marçal, é uma das mais antigas catadoras de papel da cidade de Belo Horizonte. Vinda do interior de Minas para a capital em busca de uma vida melhor, ela faz parte da Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reaproveitável (Asmare), uma cooperativa que recolhe 450 toneladas de lixo por mês e beneficia indiretamente 1500 pessoas. Ouvida pela Fórum há dois anos, ela dizia ter um sonho. “Queremos transformar a Asmare em uma indústria de reciclagem e, assim, fechar todo o ciclo produtivo”. Em setembro, o sonho de dona Geralda se realizou. Foi inaugurada na capital mineira a primeira unidade industrial de reciclagem de plástico da América Latina, fruto de uma parceria dos catadores com a Fundação Banco do Brasil, BrasilPrev, Ministério do Trabalho e Emprego, Petrobrás e a prefeitura de BH. A fábrica tem inicialmente capacidade de produção superior a três toneladas e agora os trabalhadores finalmente dominam toda a cadeia produtiva da reciclagem. “Tem jeito, gente. É só unir, acreditar e lutar. Ninguém mais vai explorar a gente”, comemorou dona Geralda durante a inauguração da fábrica no 4º Festival de Lixo e Cidadania.
O prefeito Fernando Pimentel se mostrou bastante otimista com a iniciativa, destacando que a indústria vai gerar empregos, renda e bem estar social. “Estamos no início da caminhada. O nosso compromisso é construir uma cidade digna, que dê oportunidades iguais a todos. Essa unidade industrial insere-se nesse objetivo”. Também presente ao evento, Danielle Mitterrand, ex-primeira dama da França e presidente da Fundação France Libertés ressaltou a importância do projeto. “As últimas catástrofes naturais mostram que a natureza se vinga das nossas políticas neoliberais irresponsáveis. Os resíduos sólidos são conseqüência do consumismo. Os catadores, com a nobreza de nada destruir e sim adaptar, mostram para o mundo que é possível governá-lo de outra maneira, com respeito e gratidão à vida”. A gestão da indústria estará nas mãos da Rede de Economia Solidária, envolvendo oito associações e cooperativas de catadores de materiais recicláveis da Região Metropolitana de Belo Horizonte. O presidente da Fundação Banco do Brasil, Jacques Pena, explica que o apoio aos catadores começou em 2003, com o Programa Fome Zero, do governo Lula. “Decidimos que a ação da Fundação priorizaria os trabalhadores que se encontravam nos lixões e nas ruas das grandes cidades, os quilombolas, os indígenas e os trabalhadores da reforma agrária”, esclarece. “Esse projeto da indústria dos catadores aqui em BH é emblemático para nós. Está entre os quatro prioritários que temos no país e nosso desafio é repeti-lo em outras cidades”, completa.
José Aparecido Gonçalves, o Cido, coordenador de projetos da Pastoral de Rua de Belo Horizonte, explica que os ganhos da produção serão repartidos: 50% serão investidos na indústria, 40% divididos entre os associados (hoje em torno de 600 pessoas) e 10% terão como destino os cofres das prefeituras da região metropolitana, para serem investidos em novos projetos sociais. “O município que não der o justo destino a esse dinheiro, será cortado do projeto”, avisa Cido.
Enquanto isso, em São Paulo...Se em Belo Horizonte quem trabalha com material reciclável está conseguindo avanços em termos de estrutura, em São Paulo a realidade é bem diferente. Centenas de catadores da região central podem ser obrigados a abandonar seu local de trabalho. A ameaça vem de uma proposta apresentada em julho pela subprefeitura da Sé, que pretende encaminhá-los para uma usina que está sendo construída na Vila Maria, zona norte da cidade. "A subprefeitura não sentou com nenhum de nós para discutir essa proposta", reclama Carlos Antonio dos Reis, conhecido como Carlão, coordenador do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais.
“A prefeitura quer nos retirar do centro, mas é aqui que moramos, queremos o direito de trabalhar onde vivemos”, concorda Igor Calheiros, também catador. Contrariados com a falta de diálogo, eles reclamam de ter que abandonar o lugar onde há anos vivem e trabalham. Muitos possuem vínculos antigos com o local, têm filhos em escolas da região, são conhecidos e apoiados pelos moradores e por empresas.
Estimativas do Instituto Pólis apontam que hoje, na cidade de São Paulo, cerca de 20 mil pessoas vivam da coleta de recicláveis. Desse total, em média três mil seriam moradores de rua, de acordo com dados de levantamento realizado pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe). Atualmente, na região central da cidade - ponto nevrálgico do imbróglio - há quatro cooperativas que representam oportunidade de trabalho para aproximadamente 600 pessoas. Por trás do número, uma garantia, ainda que mínima, de alimentação, moradia e sobrevivência para varias famílias.
Entre os catadores, um sentimento é praticamente unânime. O medo de perder o pouco que possuem. Aparecido Marcolino de Oliveira, de 56 anos, é um deles. Após 40 anos trabalhando em diferentes ocupações, ele hoje enfrenta o desemprego. Sem aposentadoria e com sete filhos para criar, a alternativa que encontrou foi a carroça e a reciclagem de lixo. Ele não gosta da idéia de ir para uma usina na Vila Maria, e promete que irá lutar para defender seu trabalho. “A gente não ganha o que merece, mas o prato de comida na mesa lá de casa não falta”, pondera.
Há mais de vinte anos esses trabalhadores se organizam e lutam pelo reconhecimento da atividade como uma categoria profissional. Desde 1999, o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis é o núcleo responsável pela articulação política da categoria. Uma de suas principais conquistas foi justamente a inclusão da atividade dos catadores na Classificação Brasileira de Ocupações. Carlão, coordenador do movimento, explica que, para quem é vitima diária do preconceito, esse reconhecimento é muito importante: "Até então éramos conhecidos apenas como catador de lixo, carroceiro", lembra. Entretanto, a opinião sobre a importância do trabalho dos catadores não é unânime.
O subprefeito da Sé os responsabiliza pela criação de mini lixões na cidade, o que, em sua opinião, é mais um motivo para retirá-los do centro. Essa operação de retirada, chamada pelos catadores de "operação limpeza", faz parte de um amplo projeto de revitalização da região central. Desde março deste ano, um conjunto de ações polêmicas tem sido empreendido, entre elas, o fechamento da "cracolândia", o cerco aos camelôs e mais recentemente a abertura de alguns calçadões. Para o vereador Paulo Teixeira (PT), se houvesse um real interesse da prefeitura em manter os catadores no processo de reciclagem, seriam tomadas outras atitudes, como a abertura de linhas de financiamento para compra de veículos para coleta. Para Teixeira, deslocá-los para o bairro da Vila Maria é uma maneira de quebrar a espinha dorsal desses movimentos que se encontram organizados no centro. "É uma visão elitista do subprefeito, uma forma de limpeza social".
Os catadores do centro não são as únicas vítimas da sanha higienista da prefeitura.
Em setembro, uma cooperativa de catadores de Pinheiros, bairro nobre da capital, recebeu uma ordem de despejo por parte da prefeitura do local onde estavam instalados desde 1989. Com as incertezas que pairam sobre seu trabalho e o receio de não terem mais como sustentar suas famílias, Carlão resume o medo daqueles que trabalham com lixo na cidade. "Será que o nosso trabalho vai ser valorizado se aceitarmos ir para a usina da Vila Maria? Para a maioria, o que está por vir é um novo massacre", se referindo à chacina dos moradores de rua, na Sé, em agosto de 2004. Mas, desta vez, segundo os catadores, um massacre anunciado.
Revista Fórum

Comentários

Anônimo disse…
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